quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Pequena estrela


Estou presa imóvel em uma costura estática que entre seus pontos e linhas rasgam minha pele nos lençóis. Aqui jaz o futuro e o passado, de onde todos os caminhos passam. O presente se perde no limbo da incerteza, de seus infinitos abismos, céus, lagos e alvoradas. Vejo uma luz distante vermelha, que vai se pondo se transformando em laranja e depois na escuridão. As estrelas se entremeiam num céu pálido, macio e aconchegante.

Deitada aqui imóvel, busco alinhar os objetos em sua posição perfeita, mística, para chamar e receber em totalidade as bênçãos espirituais. Anjos anunciam a sua chegada de tempos em tempos, me dando o combustível para cada amanhecer. Sinto falta profunda do aconchego, do acolhimento, da proteção e do afago. Parece que um pedaço de mim se foi, e a fraqueza toma conta de mim me drenando por completo. Como um pedaço que está faltando, me sento, inclino minha cabeça e entremeio delicadamente uma de minhas mãos pelos cabelos com os dedos abertos, os fechando levemente, como se pelas pontas dos meus dedos eu pudesse recuperar aquilo que eu era. Me levanto com dificuldade com os cabelos esvoaçados caindo como a cachoeira dos lamentos, e sigo em direção ao rumo inevitável daquilo que não pode deixar de ser feito.

Como recuperar aquilo que saiu? Será que eu perdi pelo caminho? Ou será que me tiraram? Será que um dia vão me devolver? Ou será que eu serei capaz de me devolver?

Executo em cada nota o sentimento de um oceano abiçal, cada uma meticulosamente calculada e cronometrada. As notas pingam como gotas em um lago, vibrando até o fundo do universo da alma de vastidão monumental. Tangencio as cordas da existência como a varinha de uma bruxa.

A alma retorna aos poucos mas a fraqueza parece algo inerente da minha existência. As olheiras nunca vão embora, e os cabelos caem como em eterna redenção.

Marco o caminho com as pegadas dos meus feitos, para nunca esquecer de onde eu vim. Meus pés, mãos e boca vão desenhando o rumo da minha história, pedindo as mudanças necessárias para que as coisas melhorem.

Escrevo a minha história na Terra para que eu possa desencarnar em paz.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Rexistir




As poucas vezes que tive felicidade e liberdade foram com quatro coisas que me mantém viva e plenamente livre,
a minha verdade,
a minha família e amigos,
a música,
a escrita.

A inocência foi embora a muito tempo. Era tão bom ter 20 anos. Virava as páginas da vida ávida por lê-las, e tomar ciência de todos os seus pormenores. Na adolescência até esta idade, a vida também parecia um tanto mais interessante.

Hoje me vejo muito mais madura, porém, a sensação que me dá é que tudo que vejo são páginas viradas, livros que já foram devera lidos de cabo a rabo, folheados, virados de ponta cabeça, e fitados de cima abaixo.

Ao mesmo tempo parece que aquela mesma menina inocente ainda habita em mim, como que esperando que algo seja ainda capaz de reascender a crença na vida novamente.

Como é possível ser feliz num mundo onde você é tratada como um ser insignificante, que sequer é capaz de pena, compaixão, paixão e que não lhe dão direito sequer à fala, desejo, escolha ou opinião? Afinal, você é considerada um ser menor, menos ser humano. Na verdade, sequer é vista como um ser humano.

Penso a todo momento o que vim fazer aqui. Sinto todos os dias que nada do que eu faço é suficiente para expressar toda a minha verdade, a minha dor e o meu amor, e o que vim trazer para este planeta. As minhas obrigações dragam 99% daquilo que eu gostaria de fazer e tenho a oferecer, e eu lembro de todas as mulheres que não puderem ser nada por tantos anos na história da humanidade por conta do machismo, e das poucas que conseguiram fazer, e que sofreram centenas de anos de epistemicídio. Muitas estão ainda sendo descobertas agora.

A rua é tão acolhedora. Nos arcos encontramos a nossa família. Pessoas que também fazem parte da nossa família, e fizeram parte da nossa história. Juntas contamos a história do Rio de Janeiro, a história que os homens brancos e colonos jamais irão contar.

Frequentamos a casa da Madame Satã, de Brigitte de Buzios, Jane Di Castro, Rogéria, de Luana Muniz, Majorie Marchi, Chiquinha Gonzaga, Eric de Jesus, Alessandra Makkeda, João Nery, Marielle Franco e tantas outras.

A menina que habita em mim continua viva e com o mesmo desejo e energia de mudança, mesmo que com ela muitos pedaços se vão pelo caminho, mas outros são acoplados.

O mundo não é o mundo que gostaríamos, mas estamos ainda lutando por ele.





  • "A rosa meditativa" - Salvador Dali (1958)






sexta-feira, 12 de julho de 2024

O poço.




Ando para o mesmo lugar tentando encontrar algo, mas afundo como areia movediça. Procuro mas não acho nada no lugar. Tenho certeza que tem alguma coisa ali, mas é tão difícil alcançar. Quanto mais eu me movo tentando sair, mais eu afundo cada vez mais. Tento escapar do destino inevitável, mas é impossível. Há forças muito maiores operando, que lhe dragam por completo para dentro, e é impossível para qualquer um escapar. Como um buraco negro, ele engole tudo, e nada escapa ao redor. Sou engolida para dentro de mim mesma, e vou parar neste lugar aterrorizante. Entro em pânico, mas tento manter a calma. Só de olhar para o penhasco já dá frio na barriga. O vazio abissal que lá jaz me faz cair em queda livre. Numa meta-queda caio em mim mesma e afundo nas minhas muitas existências. Parece infinito. Será que irei cair para sempre? Existe um fundo?


Chego ao fundo, ergo as mãos para o céu e agradeço. Faço uma oração, e dou graças ao senhor. Deitada ali no chão, em posição fetal, olho à minha frente, e não vejo nada.



Pintura "A Persistência da Memória" de 1931 do Salvador Dali.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Mumificação.

 











A pior mordaça é a invisível.


Pintura "Criança geopolítica assistindo o nascimento de um novo homem" de 1943 de Salvador Dali.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Caixa de Pandora.



Desaguo minhas águas contaminadas em mim mesma. Não posso expôr, não posso falar. A cada dia que passa, me sinto mais amordaçada. Mas a cada dia que passa, em contrapartida, me sinto com mais sede de lutar. A cada negativa, a cada mão no pescoço, a cada apinéia, a cada rompimento, a cada abandono, a cada indiferença, a cada desvalorização. A cada dia que passa, esta dor se transforma em luta, e não há nada que depois será capaz de me segurar. Posso ficar amordaçada por muito tempo. Mas não para sempre.

domingo, 21 de abril de 2024

Atual.





Me sinto atual.











Obra de Dali entitulada: "Jovem Virgem Autossodomisada pelos Chifres de sua Castidade - Salvador Dalí"